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Obra e artista: conseguimos separar?

Separar o artista da obra. Até quando podemos desassociar o artista da sua criação? Inúmeros são os casos de talentosos atores, diretores, cantores que possuem uma lista de polêmicas e até crimes nas suas vidas pessoais. Até que ponto podemos abstrair da vida do artista e olhar para a obra apenas pelo seu viés artístico e estético?

Me peguei refletindo sobre o assunto nas últimas semanas, desde que soube que o Festival Varilux de 2024 irá homenagear o ator francês Alain Delon, morto neste ano (2024). Para além da carreira artística de ator, produtor e empresário, Delon foi também uma figura pública bastante polêmica na sociedade francesa dos últimos 60 anos.


Nascido em Sceaux, região de Bourgogne, na França, em 1935, o ator foi descoberto em 1958 pelo diretor Luchino Visconti, e desde então se tornou um símbolo da beleza masculina, europeia e francesa. Para além de seu trabalho e talento como ator (ambos são bastante criticáveis uma  vez que muitas vezes o ator parece que interpreta sempre um mesmo papel: o de Alain Delon, homem solitário e taciturno), a vida pessoal de Delon sempre foi motivo de especulação e polêmica: de filho não assumido, passando pela defesa da extrema direita até violência doméstica.

Em 2019, após a divulgação de que Delon seria homenageado com a “Palme d’honneur” no Festival de Cannes, várias associações dos direitos das mulheres e de apoio à causa LGBT se manifestaram contra a homenagem ao ator, trazendo à tona entrevistas do ano de 2013 que o mesmo concedeu ao jornal Figaro em que assumiu já ter agredido sua ex companheira (após uma declaração de seu caçula dizendo que o pai agredia a mãe): “Machiste ? Ça dépend de ce que vous appelez machiste. Si une gifle, c’est machiste, oui, j’ai dû être machiste. Mais j’en ai reçu moi aussi des gifles, même de la part de femmes !” declarou o ator após as denúncias do filho.

Além de banalizar comportamentos tóxicos em relacionamentos, o mesmo também reclama do comportamento de mulheres emancipadas pelos movimentos feministas. Delon afirmava ser filho de uma outra época, do patriarcado, e acrescenta: “De plus en plus de femmes sont devenues des hommes. Les femmes se sont battues pour avoir des droits, elles ont eu ce qu’elles voulaient, très bien… Mais pourquoi aller jusqu’à se comporter comme des hommes, pourquoi vouloir leur ressembler ? Je ne comprends pas”.

Para além da violência física e simbólica contra as mulheres, o ator revelou durante o programa de TV francês "C à vous" que defende o casamento homoafetivo porém não concorda com a adoção de crianças por esses mesmos casais, pois a família seria formada apenas por homens e mulheres: “Je ne suis pas contre le mariage gay, je m’en fiche éperdument, mais je suis contre l’adoption des enfants. On va encore me dire que je dois m’adapter et vivre avec mon temps… Eh bien je vis très mal cette époque qui banalise ce qui est contre-nature. Quitte à passer pour un vieux con, ça me choque !”, declarou o artista.

Não era de se surpreender que tal figura, com tais ideias, fosse simpático à extrema-direita francesa, especialmente a Jean-Marie Le Pen (fundador do Front National), a quem Delon considerava um amigo particular desde a guerra do Vietnam em que lutaram juntos. Vários vezes Delon apareceu junto à Le Pen nas mídias e defendeu seu amigo pessoal, mesmo que politicamente ele nunca tenha apoiado publicamente o FN. Durante sua vida o ator se vinculou politicamente à Valéry Giscard d'Estaing, Raymond Barre e Nicolas Sarkozy, todos políticos de direita.


Delon e Le Pen (1986)


Outro artista do mundo francófono que recentemente descobri ser uma figura um tanto quanto difícil de separar arte da vida pessoal é o pintor espanhol Pablo Picasso. Os horrores da biografia do pintor foram tantos que me fizeram perder completamente o interesse pelas suas pinturas.

Em resumo: Pablo abusou de todas as mulheres de sua vida, violentou outras tantas, fez com que seu filho mais velho ficasse dependente psicologicamente e financeiramente do pai, assim como todas as pessoas do seu entorno, amigos, amantes. Todos deveriam idolatrá-lo pela sua genialidade artística, que sinceramente, é algo fora do comum, mas que busca inspiração na dor e no sofrimento alheio. O quadro “A mulher que chora” é um desses exemplos, onde sua amante Dora Maar é retratada em prantos, algo que Picasso achava muito atraente na sua parceira, seu rosto quando ela chorava.


A mulher que chora (1937), Tate Modern, Londres


Picasso era tão egocêntrico e centrado na sua figura apenas, que quando morreu não deixou testamento para que todas as pessoas da sua vida não tivessem um momento de paz na disputa judicial que se seguiria, como que punindo-as por terem sobrevivido ao grande Picasso. E no final das contas, logo após a morte de pintor, seu neto se suicidou após ser impedido de comparecer ao funeral do avô pela viúva de Picasso, Jaqueline Roque (que também se suicidou anos depois, logo após organizar uma exposição de Picasso). Outra das vítimas do pintor foi Marie-Thèrese Walter (que o conheceu quando tinha 17 e ele 45 anos, e que fora violentada pelo pintor, além de inspirar telas do artista), que tirou a própria vida quando soube da fortuna do pintor e da batalha judicial que se seguiria para ter seus direitos.

Todas essas pessoas foram usadas por Picasso enquanto ele podia tirar algo delas (quase sempre inspiração para suas telas), depois de um tempo elas eram descartadas como se nada fossem. Dora Maar teve uma crise psicótica e viveu os restos de seus dias como freira em um convento, após o pintor  deixá-la. Dessa forma, a obra de Picasso está intimamente ligada à personalidade abusiva e tóxica do espanhol. Teria como separar obra do artista nesse caso, quando sabemos que aquela obra de arte é fruto de um abuso e de violência?

Aparentemente a separação entre obra e artista está sendo feita, tanto no caso de Picasso (centenas de exposições com suas obras são feitas anualmente) quanto de Delon (agora homenageado pelo Festival Varilux). Parece não fazer nenhuma diferença o quão problemática possa ter sido a pessoa homenageada, ou o quão agressivo possam ter sidos os valores por ela defendido, no final das contas a beleza se sobrepõe a tudo, seja a beleza de uma tela pintada em cima de muitas lágrimas e sangue, ou a de um rosto que assume tranquilamente diversas violências cometidas em nome de uma suposta educação patriarcal.

Diga-me você: obra e artista, é possível separar?



Referências:

  1. « HOMOPHOBE, FACHO »… MARC-OLIVIER FOGIEL REJETTE LES POLÉMIQUES CONCERNANT ALAIN DELON. Disponível em : https://www.lepoint.fr/

  2. MORT D'ALAIN DELON : L'HOMOSEXUALITÉ, LES FEMMES, LES VIOLENCES CONJUGALES... QUAND L'ACTEUR MULTIPLIAIT LES PRISES DE PAROLE POLÉMIQUES. Disponível em : https://www.francetvinfo.fr/

  3. SYMPATHIE POUR JEAN-MARIE LE PEN, HOMOSEXUALITÉ "CONTRE-NATURE"... QUAND ALAIN DELON FAISAIT POLÉMIQUE. Disponível em : https://www.bfmtv.com/

  4. LE VRAI VISAGE DE PICASSO. Disponível em : https://www.youtube.com/

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