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Foto do escritorJéssica Pozzi

"Eu morrerei guadalupense. Uma guadalupense independentista."

Em entrevista para o Outre-mer la 1ère em 2012, na ocasião do lançamento de sua autobiografia – La vie sans fards (ainda sem tradução no Brasil) –, Maryse Condé, que nos deixou no último dia 2 de abril aos 90 anos, é questionada sobre como ela definiria sua identidade naquele momento. Sua resposta é essa que intitula o meu texto (Je mourrai guadeloupéenne. Une Guadeloupéenne indépendantiste, no original).


A questão identitária, tema hoje tão caro para a academia, está no cerne da literatura caribenha desde o princípio. É uma questão que guia os antilhanos e guianenses, bem como os haitianos, para ficar só no mundo francófono caribenho, em suas lutas diárias por reconhecimento e autodeterminação. Esse é também um tema que me é caro enquanto professora de francês, já que o que guia meu trabalho é o esforço pela não reprodução dos estereótipos ou da idealização de uma França que perpetua ainda seu poder imperialista.

Por isso a morte de Maryse Condé me tocou profundamente e eu não podia falar de outra coisa nesse primeiro texto para o blog da Pot-Pourri. A autora foi base teórica para toda a minha pesquisa acadêmica e acabou por me ensinar muitas coisas.

Felizmente, Maryse e a literatura caribenha como um todo vêm ganhando espaço no Brasil mais recentemente com obras muito importantes sendo traduzidas para o português. Mas se Aimé Césaire e Frantz Fanon, dois grandes autores – cuja obra, aliás, eu recomendo fortemente a leitura – levaram uns bons anos para chegar por aqui (imagina só: Césaire escreve desde os anos 1920, Fanon morreu em 1961, e só muito recentemente tivemos acesso a eles em português), podemos imaginar o que resta para as mulheres escritoras caribenhas, né?

Condé, que durante a sua vida transitou entre África, Europa e Américas lecionando e exercendo seu trabalho como jornalista, dedicou sua obra literária principalmente às mulheres caribenhas, mesmo que insistisse sempre em dizer que não era uma autora feminista. Em Eu, Tituba: bruxa negra de Salém, livro que lemos no nosso primeiro clube de leitura aqui na Pot-Pourri em 2021, a autora, em uma espécie de biografia cujas lacunas são preenchidas pela ficção, devolve à história essa mulher escravizada – Tituba, acusada de iniciar os cultos de bruxaria em Salém no século dezessete – que fora esquecida pela (ou apagada da) história oficial.

Aliás, outros de seus livros também foram traduzidos para o português, então já fica aqui a dica pra quem quiser se aventurar pela obra da autora: O evangelho do novo mundo, O coração que chora e que ri: contos verdadeiros da minha infância, O fabuloso e triste destino de Ivan e Ivana.



No processo de pesquisa para a escrita desse texto, descobri também que o próximo livro de Maryse a ser publicado em português será Victoire, les saveurs et les mots, esse que quase foi o objeto de pesquisa no meu mestrado em literatura, um livro pelo qual eu tenho muito carinho. Como alguns dos meus alunos sabem, o projeto acabou mudando porque decidi dar continuidade a um trabalho de pesquisa iniciado ainda na graduação sobre a Ina Césaire, outra mulher caribenha incrível!

Em Victoire, les saveurs et les mots, Condé conta a história de sua avó, cozinheira de mão cheia, e fala dessa relação tão íntima das mulheres de sua ilha com os alimentos. Vale muito a pena ficar de olho nesse lançamento da editora Rosa dos Ventos!

Maryse Condé tem então ganhado a notoriedade que merece por aqui. Sua obra é de grande importância para entender as questões identitárias caribenhas e também a relação desses territórios com a França. Se trata, portanto, de um convite para um mergulho no seio da sociedade antilhada e nas complexidades do sujeito caribenho, que muito nos ensina sobre nosso próprio passado colonial.

Apesar de ter vivido por muito tempo em África, flertando com essa busca –presente nos escritos antilhanos desde Aimé Césaire – pela identidade africana roubada dos escravizados trazidos à força às Américas, Condé entendeu que identidade antilhana tem hoje algo único: a união de diversas culturas e uma série de fatos históricos que resultaram nesse sujeito plural a quem compete decidir por si sobre seu futuro. Diante de uma França que hoje se orgulha em ter essa grande autora entre os seus, a voz de Condé ainda ecoa: morreu guadalupense e idependentista.



Guadalupe é um arquipélago localizado no Caribe, na América Central. Assim como a Martinica e a Guiana Francesa, foi colonizada pelos franceses e hoje é um Departamento Ultramarino Francês (ou seja, é como um estado francês fora da Europa).

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