Quem nos acompanha pelo Instagram deve lembrar que há algum tempo recomendamos o livro Cartas a uma negra, da autora martinicana Françoise Ega.
Trabalho desde a graduação com a literatura em língua francesa da ilha da Martinica. Quem é meu/minha aluno/a sabe que esse interesse e trabalho de pesquisa acabam aparecendo com frequência nas aulas de francês. 😄 E o livro de Françoise Ega, que acaba de ganhar tradução para o português, é o tema da minha dissertação de mestrado.
Essa autora acabou me levando para uma viagem muito especial enquanto pesquisadora, mas também enquanto professora e estudante de francês e suas culturas.
Quando li Lettres à une noire pela primeira vez, na hora quis trabalhar com a obra. Isso porque, assim que descobri mais sobre a história da ilha da Martinica, senti que esse espaço francófono compartilhava muito culturalmente com o Brasil. Com Cartas a uma negra ficava evidente essa observação: a narradora do livro, uma martinicana morando em Marselha, se identifica com a autora brasileira Carolina Maria de Jesus ao se deparar com um texto sobre o livro Quarto de despejo, obra na qual a brasileira relata seu cotidiano em uma favela brasileira. Françoise Ega decide, então, escrever cartas - que jamais serão enviadas - para sua “irmã brasileira”, contando e compartilhando com Carolina sua vida, tão semelhante à dela.
A obra publicada em francês, que conversava tanto com uma das maiores autoras brasileiras, ainda não tinha sido traduzida e quase ninguém conhecia a autora Françoise Ega no Brasil. Foi por isso que, tendo uma viagem marcada pra França e para Martinica no ano seguinte desta descoberta, comecei a pesquisar mais sobre a Ega; queria achar alguma biografia da autora, algum registro em bibliotecas ou memoriais…
Eis que encontro o site do Comité Mam’Ega - Vivre ensemble. O Comité Mam’Ega (contração em créole de Madame Ega) é uma associação criada pelos filhos de Françoise Ega a fim de perpetuar o legado da mãe, que foi militante assídua na sua comunidade em Marselha, no bairro Saint-Barthelemy, que compreende sete cités da habitação popular. A associação tem como objetivo lutar contra toda forma de exclusão social e promove apoio escolar para as crianças, encontros literários e diversas atividades culturais para a comunidade. Atividades essas herdadas de Ega, que sempre ajudara seus vizinhos a se integrarem na cidade e na sociedade.
Escrevi para a associação, pensando em visitar o espaço e obter, sur le terrain, mais informações sobre Françoise Ega. Quem respondeu meu e-mail com entusiasmo e disponibilidade para o encontro foi seu filho, Jean-Pierre Ega. Minha viagem a Marselha ocorreria após minha viagem para Marrakech, no Marrocos. No entanto, quando ainda estava na França, antes de partir para o Marrocos, recebi um telefonema de Jean-Pierre dizendo que infelizmente viajaria no período em que eu estaria em Marselha. Conversamos para encontrar uma solução e qual não foi a surpresa ao descobrir que ambos estaríamos em Marrakech nas mesmas datas?!
O encontro com a família Ega começou, então, em um café da Praça Jeema-el-Fna, em Marrakech. Jean-Pierre foi generoso comigo: deu informações preciosas e contou muitas histórias de sua mãe. Para mim, que até então sabia pouco sobre ela, já que na internet não havia nada, foi como encontrar um tesouro!
Na sequência da viagem, finalmente em Marselha, fui acolhida no Comité por Jean-Marc Ega, Farid e Guy. Farid fez uma visita conosco pelo bairro, pelos centros culturais dali e pelas cités, apontando lugares e memórias de Ega, como por exemplo a igreja que frequentava e na qual acabara falecendo de um ataque do coração. Jean-Marc, seu filho, e Guy, amigo próximo da família, também me encheram de histórias sobre Mam’Ega; sobre seu comportamento, sua relação com a escrita, suas leituras…
Mas a viagem não acabaria por aí, o próximo destino se encontrava do outro lado do oceano, no Caribe: estava indo para a ilha da Martinica, ilha natal da autora, e para a ilha vizinha, Guadalupe. Pessoalmente, era um sonho conhecer as Antilhas francesas, no entanto não imaginaria que seria assim. Novamente fui recebida de braços abertos pelos filhos e sobrinhas de Ega que lá viviam. E mais uma vez meus ouvidos se encheram de histórias e informações riquíssimas!
Conheci a famosa Montagne Pelée, vulcão adormecido da Martinica, com Jean-Luc Ega e Kiki. A montanha fica próxima de Morne Rouge, a cidade natal de Françoise Ega. Aproveitamos para conhecer a cidade e o cemitério onde ela está enterrada. Depois de Martinica, ainda tive a oportunidade de conversar com Christiane Ega, em Guadalupe: Christiane herdou da mãe o interesse pelas letras e se tornou professora de francês. Pude então conhecer a biblioteca de Christiane, que contava com diversos títulos que pertenceram à sua mãe.
Agora no fim da escrita de minha dissertação, todas as memórias dessa viagem e experiência ficam cada vez mais vivas! Foi uma oportunidade incrível que enriqueceu não somente a minha pesquisa acadêmica, como também minhas aulas. Enquanto professora de língua, entendo que esse contato com o mundo e com pessoas é muito importante e rico: é a partir dessas trocas que nosso conhecimento se expande.
Ter conhecido as ilhas francófonas do Caribe e ter trocado com tanta gente não apenas sobre a Françoise, mas também sobre todas as culturas e histórias que atravessam as diferentes gerações dessa família, foi com certeza uma experiência formadora.
Um agradecimento especial a toda a família Ega e amigos pelo acolhimento ❤️
Nossa, que história bonita e que memórias colhidas, amei saber, não conhecia a autora, achei realmente incrível a ligação dela com Carolina. Um verdadeiro tesouro essas conexões e o teu trabalho! Merci pour cette magnifique partage! ❤️