
Há alguns anos me tornei uma pessoa fascinada pela linguística e por como a linguagem e as línguas fazem parte de nós, tanto enquanto sujeitos, como enquanto sociedade. Por isso, acredito que é muito rico refletirmos sobre como a língua nos constitui ou melhor, de que forma a nossa visão de mundo é formada através da nossa língua. O linguista W. Von Humbold¹ foi o primeiro a desenvolver a ideia de que cada língua propõe a sua própria visão de mundo. Com essa teoria entendemos que a língua é a forma como uma parte da humanidade simboliza através da própria estrutura de sua língua a sua forma de conceber o mundo.
Partindo desse contexto, compartilho uma leitura recente que fiz, trata-se do livro Je parle comme je suis, da linguista e professora da Sorbonne Julie Neveux. Já pelo título do livro podemos ter uma ideia do que a autora irá nos apresentar, "Eu falo como eu sou" (tradução nossa, pois o livro ainda não foi publicado no Brasil), ou seja, falar e ser estão no mesmo plano, só posso falar sendo algo, sendo um sujeito no mundo. Ou melhor, ser um sujeito no mundo depende do ato de falarmos. O que sou será refletido na minha fala e apenas poderei ser ao me colocar no mundo como um sujeito falante. Em seguida, temos o subtítulo da obra: Ce que nos mots disent sur nous ("O que nossas palavras dizem sobre nós" - tradução nossa), ou seja, nossas palavras, nossas escolhas refletem quem somos.
Mesmo que esse assunto possa parecer muito teórico, ele faz parte da nossa vida cotidiana e a linguista Julie Neuveux deixa isso muito explícito. Ela nos mostra como as revoluções políticas, sociais e tecnológicas que vivemos nos últimos anos impactaram a língua francesa, ela mostra como a língua francesa (assim como a língua portuguesa ou qualquer outra que conheçamos) é uma espécie de espelho dos últimos acontecimentos mundiais.
Há poucos anos, o souris ("mouse" em francês) se referia apenas ao animal (o rato). Outras expressões como ouvrir une fenêtre ("abrir uma janela" - o que em português seria “abrir uma aba” - no computador), se referia somente ao simples ato de abrir a janela da sua casa. Copier e coller ("copiar" e "colar") também tinham sentidos muito diferentes dos atuais. Esses são apenas alguns exemplos que nos mostram como a revolução tecnológica e os avanços da informática mudaram a língua. Na sua obra, Julie Neveux desenrola um ensaio muito interessante sobre o vocabulário da nossa sociedade e sobre as mudanças da língua francesa ao decorrer do século XXI. O que ela compartilha conosco é que as palavras são ricas, nelas há uma história, há uma cultura, elas carregam muitos acontecimentos e transformações da sociedade. E nós, falantes, não temos consciência disso, pois a língua faz parte de nós e nós só somos na e pela língua.²
Nesse ensaio fascinante, Julie nos apresenta mais de 100 palavras e expressões que utilizamos, e discute como essas palavras entraram no nosso cotidiano. Como por exemplo, être en mode (“estar em modo…” - essa é uma expressão em francês utilizada em frases como: Je suis en mode détente ou Je suis en mode drague, em português poderíamos traduzir por algo como “Estou relaxando” e “Estou paquerando”, mas com a estrutura en mode que significa “em modo”, o que Julie compara a máquinas, dizendo que estamos usando a linguagem que se usa para máquinas, computadores, também para os seres humanos), réagir au buzz, traquer la fake news, etc. A autora consegue costurar tais expressões com um retrato da nossa sociedade atual. Além disso, também vemos na obra expressões que evocam a era pós #MeToo na França, como charge mentale ("carga mental"), que até muito pouco tempo era desconhecida. E também o movimento ecológico, com transition (transição, referindo-se à transição energética) e recyclage (reciclagem). A linguista nos mostra que nós falamos a nossa língua, mas também que a língua nos fala.
Penso que refletir sobre a língua é refletir sobre a humanidade, sobre nossas práticas sociais e sobre as mudanças pelas quais passamos. De forma leve e muito rica, esse ensaio nos convida a isso. Atravessamos diversas revoluções do século XXI através das palavras e expressões. Dedicar um tempo para pensar sobre a nossa língua e sobre as nossas palavras, nos enriquece. As palavras têm um (grande) peso e elas falam sobre nós.
¹ HUMBOLD W. (1974 [1830]) Introduction à l'œuvre sur le Kavi et autres essais, Paris, Le Seuil (chapitre 10 à 14).
² O linguista francês Émile Benveniste discute essa questão em seu texto “A Subjetividade na linguagem”. Benveniste, Émile. Problemas de Linguística Geral I. São Paulo: Pontes Editores, 1976.
Comments